Crónica de Jorge C Ferreira | Tudo a arder

Jorge C Ferreira

 

Tudo a arder
por Jorge C Ferreira

 

Sim, há o “… fogo que arde sem de ver… “. Todos sabemos desses calores difíceis de controlar. Dos corpos que parecem perdidos. Do ardor insuportável. Dos rostos ensimesmados. Do caminho para a perdição ou para a salvação. Das noites gritadas.

Já vi arder corações, amores que pareciam eternos, almas empedernidas. Não sou pessoa de desatar fogos. Sei que não posso ser o fogo eterno. Mas estou farto de ver arder sonhos. Não gosto de ver sofrer. Não me agradam corações destruídos. Sei que há quem incendeie paixões e depois não as apague.

Há agonias, tão intensas, que nos deixam de rastos. Não há unidade de queimados para estas coisas. Os sentimentos são tramados. Um fogo constante que, muitas vezes, se consome a si próprio.

Mas lembro-me sempre do maluco da vila a gritar: “deixa arder que o meu pai é bombeiro.”

A televisão despeja fogos e tragédias. Um “Breaking News” constante. Foi assim durante demasiados dias, demasiadas horas. A exploração da desgraça. Gente que vive com os seus animais em sítios onde ninguém vai. Os repórteres enchem chouriços e tentam apanhar o mais crítico. “O horror, a tragédia!”. As televisões vão repetindo imagens que ninguém quer ver.

Apesar de tudo isto. Das altas temperaturas, da televisão, do estado de emergência. Há quem teime em se imolar após o seu amor ter sido traído. Não foi capaz de ver o ser amado com outra companhia. Tudo isto após ter queimado todas as cartas cheias de promessas de amor eterno e as ter enterrado no quintal da casa. O mesmo fez aos lençóis onde tinham feito amor, ao colchão e à cama.

As conversas na terra subiram de tom. Dividem-se as opiniões. Aparece um operador de câmera e um perguntador. As pessoas aproximam-se. Querem ter o seu pedaço de fama. Aprazam-se as costumadas “entrevistas”. Tudo vai ser objecto de análise num espaço especial de um programa de entretenimento.

É crime atear fogo a florestas. Será crime atear fogos em corações desprotegidos?

Afinal um coração desprotegido é uma floresta virgem. Um pulmão para a vida. Uma coisa digna de adoração. Adorar uma árvore é adorar a intensidade da vida. Adorar os milhares de árvores daquela floresta é um êxtase. Quando tudo arde é uma perda inenarrável para o nosso viver. Também nós ardemos. Um arder lento e triste. O nosso caminho para um final sem remissão.

De novo o louco da Vila: “deixa arder que o meu pai é bombeiro!”.

Tudo isto é cansativo e repetitivo. Todos os dias, todos os anos, com toda a gente. Tudo acontece mais ou menos do mesmo modo. Nada é novo. Muitas coisas agravam-se porque a qualidade de vida se agrava.

O marido que pega na caçadeira e faz fogo sobre a mulher, a ex-mulher, a amante. Um fogo posto mortal. Um ódio cego. A cegueira da maldade. Muitos dizem em voz alta:

«não és minha não és de mais ninguém”.

Casos que vão aumentando de forma desgraçada. Outros incêndios. Outro arder. Quando os valores humanos descem ao mais baixo de uma escala por fazer.

Muito calor e menos ar condicionado. A tudo isto se junta o calor da guerra. A guerra, essa outra loucura que não é própria de humanos. Esse outro incêndio sempre em ebulição. Não me lembro de ter vivido sem ter uma guerra aqui ou acolá. Agora está mais perto de nós.

Não me canso, nunca me cansarei de dizer:

São sempre os mais desprotegidos, os mais débeis, os que mais sofrem.

O Mundo está a arder.

«Tu a falares disto! Sabes que eu tenho medo de incêndios.»

Fala de Isaurinda.

«Tu? Tu és do Fogo! Tem que se falar disto.»

Respondo.

«Eu sei. Mas não gosto.»

De novo Isaurinda e vai, a persignar-se.

Jorge C Ferreira Julho/2022(356)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

12 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tudo a arder”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    “fogo que arde sem se ver.” Só os poetas sabem falar deste fogo.
    “ Não gosto de ver sofrer.” Porque é um Homem bom. Assim a inteligência e os dons que tem consigo têm mais brilho.
    Conhecedor da vida e do mundo. Só alguém assim, sabe escrever tão belo hino, ao amor e há natureza. Um poeta de verdade e um texto feito poema. Onde a verdade impera.
    Maravilhoso ouvi-lo elevar a sua voz, sempre a favor dos desprotegidos. Nunca se canse meu amigo.
    Só estima e gratidão para si, meu poeta.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sim, minha Amiga, ensinaram-me a estar sempre ao lado dos mais desprotegidos. Espero nunca a defraudar. Abraço enorme.

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Excelente paralelismo. O fogo que arde sem se ver, intenso. Só os poetas têm arte para o descrever.
    O fogo feroz, horrível, que não precisa de palavras.
    A cada hora, a cada minuto, as imagens são avassaladoras, repetidas à exaustão. O sofrimento de quem perde o trabalho de uma vida. O cansaço de quem luta. A impunidade.
    Tempos difíceis estes, Amigo.
    Obrigada por estar desse lado.
    Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Obrigado, eu, por estar desse lado e me ler e comentar. Só assim faz sentido escrever. A minha gratidão. Abraço grande

  3. Filomena Geraldes

    Poeta.
    Contas-nos dos incêndios das florestas e dos outros. Dos corações que ardem sem se ver…

    Arde ao rubro a floresta. Enegrece. Destituida de vida. As labaredas alimentam-se, vorazes, do que outrora
    foi lar.
    Não lhe escutamos os gritos de pavor.
    Ou será que não temos a capacidade de escutar?
    Poderia chamar-lhe mãe. Natureza.
    A que abriga no seu ventre o palpitar da vida. Essa mãe tão capaz de se multiplicar e metamorfizar a cada estação. Latente. Que respira. Que chama a chuva e cresce sem escolher caminhos. Cresce. Floresce. Renova-se. A mãe.
    Até que a raça do homem a sufoca entre chamas, fumo e morte. Arde ao rubro a floresta, meu Poeta…

    Dos corações que se incendeiam também nos narras. Esses que calam a dor da perda. Os que não têm extintores. Ou bombeiros que
    os apaguem. Os que morrem e desaparecem transformados
    em cinza. Desses não falam as gentes.
    Só os poetas que conhecem as
    doenças de amor.
    Sem prescrição médica.
    Os poetas que toda a vida amaram e reconhecem no amor um segredo só seu…

    Ah, meu Amigo, vamos chamar a chuva?
    Vamos cobrir a terra e os corações abrasados com pó de água?
    Vamos salvar o amor?
    Vamos estancar a dor?

    Este foi um texto iluminado.
    Pelo brilho das estrelas! Amei.
    Grata.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Importante o que escreveste. Obrigado por estares sempre aí, minha Amiga. Imensa gratidão. Abraço grande

  4. Regina Conde

    O fogo que arde em cada um de nós de formas tão diferentes. Estão a acontecer os fogos, todos vemos e por vezes sentimos o cheiro do nosso país reduzido a cinzas. No mundo existe um crepitar. Mundo sem leis. Não pretendo tornar a crónica a minha dor, no entanto, vivo num fogo cruzado que se vê e também não existe quem domine a demência. Meu Amigo um abraço enorme.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Que encontres a melhor maneira de enfrentar a tua luta. É muito bom ter-te desse lado. Abraço enorme

  5. José Luís Outono

    Excelente análise dos tempos presentes, num “dialogar” de momentos preocupantes nesta “Bolinha ligeiramente achatada” nos pólos.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Vamos ultrapassar isto. Grato por estares desse lado. Grande abraço.

  6. Cristina Ferreira

    Consegues fazer magia com um tema tão actual e malvado. Sim, a Isaurinda é do fogo, esse elemento de enorme poder espiritual. Abraço, poeta ❤️

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Amiga generosa. Quem bom estar aqui. Gratidão. Abraço grande.

Comments are closed.